Homologação de sentença estrangeira no Brasil: o caso Robinho

22/03/2024by admin0
Foto: MacNicol / AFP

Foto: MacNicol / AFP

Autor: Dr. Gilson Sidney Amancio de Souza

 

Muito se tem comentado, nos últimos dias, a possibilidade do jogador  de futebol Robinho, condenado pela justiça italiana, por imputação de crime sexual, a 9 (nove) anos de prisão, ser obrigado a cumprir essa pena no Brasil.

A questão está sob apreciação do Superior Tribunal de Justiça e a resposta deve ser positiva: sim, a pena imposta ao jogador na Itália poderá ser cumprida no Brasil.

O que não pode ocorrer é a extradição do jogador condenado, porque ele é brasileiro nato e a Constituição da República proíbe expressamente, no seu art. 5°, inc. l, a extradição de brasileiro nato.

Há quem defenda a tese de que essa pena imposta na Itália não poderia ser executada no Brasil, basicamente sob dois fundamentos:  a) no Tratado de Cooperação Judiciária em Matéria Penal firmado entre o Brasil e a Itália em 1989 e promulgado no Brasil pelo Decreto n° 863/1993, há expressa previsão, no seu art. 1°, item 3, de que “a cooperação não compreenderá medidas de privação da liberdade individual nem a execução  de condenações”;  b)  o art. 100 da nossa lei de migração (lei n° 13.445/2017), cujo art. 1° exige, como pressuposto da transferência da execução da pena imposta no exterior para o território brasileiro, que a hipótese comporte pedido de extradição; e,  não sendo possível a extradição (por tratar-se de brasileiro nato) também não seria possível a transferência da execução da Itália para o Brasil.[1]

Com a devida vênia, tal entendimento chega a uma conclusão equivocada porque parte de uma premissa errônea:  não se trata de mera transferência da execução da pena, instituto tratado nos artigos 100 a 102 da  Lei de Migração.

Cuida-se, na verdade, de hipótese de extraterritorialidade condicionada da própria lei brasileira, que tem previsão nos arts. 7° a 9° do Código Penal e nos arts. 787 a 790 do Código de Processo Penal.

O crime cometido por brasileiro no exterior pode sujeitar-se à lei penal brasileira em várias circunstâncias e condições.

No caso específico do crime sexual atribuído ao jogador Robinho, a hipótese é de extraterritorialidade condicionada, na forma do art. 7°, inc. II, alínea “b”, do Código Penal, norma que amplia no espaço o alcance da lei penal brasileira, levando-a a alcançar o crime cometido por brasileiro em território estrangeiro. É a aplicação do princípio da nacionalidade ou personalidade, pelo qual um Estado “tem o direito de exigir que o seu nacional no estrangeiro tenha comportamento de acordo com seu ordenamento jurídico”,[2] ou seja, a lei brasileira acompanha o nacional brasileiro aonde quer que ele vá.

E para que o nacional esteja  sujeito à lei penal brasileira nesses caso, é preciso que, nos termos do § 2º do art. 7º do Código Penal, apresentem-se algumas condições, todas elas satisfeitas no caso em exame:  a) o jogador retornou ao Brasil, encontrando-se no território brasileiro;  b) o fato pelo qual se viu condenado é crime tanto aqui quanto na Itália, onde foi cometido;  c) o crime, abstratamente considerado, está entre aqueles  pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição  (conforme se extrai  do art. 82 da lei n° 13.445/2017, só não está autorizada a extradição nos crimes cuja pena seja, segundo a lei brasileira,  inferior a 2 anos, ou quando se tratar de crime político ou de opinião);  d) o agente não foi absolvido no exterior nem cumpriu a pena lá;  e)  não houve a extinção da punibilidade do agente por qualquer causa, seja de acordo com a lei do país em que praticado o crime, seja conforme a lei brasileira.

Vale ressaltar que o jogador poderia, em tese, ter sido processado no Brasil por esse crime, no Foro da Capital do Estado onde por último ele residiu, conforme expressa disposição do art. 88 do Código de Processo Penal.  Para isso, seria preciso que a Itália não o tivesse processado e julgado, caso em que se aplicaria, em caráter de extraterritorialidade,  a lei penal brasileira  com base no denominado princípio da representação ou do desinteresse, pelo qual se aplica a lei brasileira ao crime praticado por brasileiro no estrangeiro se o país em cujo território ocorreu o delito não se interessar em sua apuração.

Como o Estado italiano, no exercício de sua jurisdição territorial, decorrente de sua soberania, processou, julgou e condenou o jogador, e como este, na condição de brasileiro nato, não poderá ser extraditado para cumprimento da pena na Itália, o Estado brasileiro,  aplicando a sua lei penal, tem o poder de homologar a decisão já transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Apelação de Milão, para que se proceda à execução dessa pena no Brasil e de acordo com as normas de execução da legislação brasileira.

Essa homologação pelo judiciário brasileiro, mais precisamente o Superior Tribunal de Justiça, é condição de eficácia da sentença estrangeira no território brasileiro.

Portanto, reitere-se, não se cuida de mera “transferência de execução da pena” que, efetivamente, não está incluída no Acordo de Cooperação internacional entre Brasil e Itália, promulgado pelo Decreto n° 863/93, nem seria permitida em face do óbice contido no art. 100 da Lei de Migração brasileira.

Trata-se de hipótese de   homologação, pela Justiça brasileira, de sentença proferida pela Justiça italiana, para que o Estado brasileiro lhe confira eficácia e executoriedade; o que, pois, tem natureza jurídica distinta da mera transferência de execução. Esta aplicar-se-ia no caso de estrangeiro condenado no exterior que esteja residindo no Brasil. E, embora também dependa de homologação pelo STJ, seu pedido deve ser formulado pelo Poder Executivo (art. 101, § 2°, da Lei n° 13.445/2017), mais precisamente o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Tratando-se  de pedido de homologação de sentença condenatória penal, uma vez recebida a documentação (decisão e documentos que a instruem) do país de origem, é atribuição do Ministério Público Federal, na pessoa do Procurador Geral da República, conforme se depreende do art. 789 do Código de Processo Penal, requerer a sua homologação, dependendo a iniciativa do PGR de prévia provocação do Ministério da Justiça apenas quando o país de onde provem a sentença não tiver, com o Brasil, tratado de extradição (cuida-se de uma condição de procedibilidade).

A competência jurisdicional para decidir sobre esse pedido de homologação, que era do Supremo Tribunal Federal antes da E.C. n° 45/2004, atualmente está afeta ao Superior Tribunal de Justiça (art. 105, inc. I, alínea “i”, da CF), cujo Regimento Interno regula, nos seus arts. 216-A a 216-N, o rito do procedimento de homologação, e confere à sua Corte Especial, integrada pelos 15 (quinze) ministros mais antigos daquele tribunal, a atribuição do julgamento.

Em obediência às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, o sentenciado foi citado para eventual contestação, no prazo de 15 dias (art. 216-h, do RISTJ),[3]  apresentou sua resposta e, por isso, a questão será levada a julgamento pelo órgão colegiado.  Caso não tivesse ele contestado, a decisão sobre a homologação da sentença estrangeira competiria ao Presidente do STJ, em decisão monocrática, conforme o art. 216-A do Regimento Interno daquela Corte.

Ressalte-se que a Corte Especial do STJ não reverá matéria probatória, nem avaliará o mérito da decisão, mas os seus aspectos formais de validade, como, v. g., a competência da autoridade estrangeira que a proferiu, a observância ou não às garantias da ampla defesa no processo em que foi prolatada, a ocorrência ou ausência de trânsito em julgado, ou de conteúdo que ofenda a dignidade da pessoa humana.

O Superior Tribunal de Justiça também poderá, eventualmente, em caso de eventual afronta a outros princípios constitucionais identificados no processo ou na decisão italianos, adequar a sentença estrangeira ao nosso ordenamento constitucional, vez que o § 2º do art. 216-A do Regimento Interno do STJ prevê a possibilidade de homologação parcial de decisão estrangeira, regra também contida no art. 961, § 2º, do Código de Processo Civil, aplicável por analogia.  Assim, por exemplo, se a sentença estrangeira estabelece regime fechado integral para o cumprimento da pena, o STJ  deverá adequá-la ao nosso princípio constitucional da individualização da pena, para permitir a progressão de regime.

Por fim, uma vez homologada a decisão estrangeira, será expedida carta de sentença para execução pela Justiça Federal.  Isso porque, em que pese o art. 789, §§ 6º e 7º, do Código de Processo Penal, disponha de forma diversa, determinando competir à Justiça Estadual do domicílio do sentenciado a execução da pena, o certo é que a Constituição brasileira, no art. 109, inc. X, firma a competência da Justiça Federal para a execução de sentença estrangeira homologada no Brasil.  E nesse sentido também dispõe o art. 216-N do Regimento Interno do STJ (que recebeu delegação direta do legislador, no art. 960, § 2º, do Código de Processo Civil, para regular a matéria).

Sobre o autor: 

Dr. Gilson Sidney Amancio de Souza

Promotor de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo (MPSP), é Mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Advogado especialista em Interesses Interesses Difusos, Ambiente e Ordenação do Território pela UCLA (Universidad de Castilla – La Mancha – Toledo, Espanha) e especialista em Direitos Supraindividuais pela Escola Superior do MPSP. Professor universitário, autor e coautor de artigos e livros jurídicos nas áreas de Direito Penal e Direito Processual Penal.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS: 

[1] Nesse sentido: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Robinho: por que a transferência de execução da pena não se aplica ao caso?. In: JOTA – https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/robinho-por-que-a-transferencia-de-execucao-da-pena-nao-se-aplica-. Acesso em 02.03.2023

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte geral. 13ª ed., São Paulo:  Saraiva, 2008, v. 1, p. 181.

[3] O Art. 789, § 2°, do Código de Processo Penal menciona prazo menor, 10 (dez) dias, para a defesa, mediante embargos.

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